Transtromeriana

Fotografia de Zoya Loonohod

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TRANSTROMERIANA

embrenhar-me na penumbra como na garganta de um bosque.
lado de cá, lanterna acesa, formações de gelo,
marcas de botas, estrias na terra.
depois a lanterna desligada, a ardósia celeste, a poalha luminosa,
álgidas estrelas de aço

torniquetes para o além: ninguém arrisca dizer qual

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Villiers

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Fotografia de Ekrulila

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VILLIERS

bem-aventurados os desventurados que nada
possuirão neste mundo e no outro também não.
por isso regressei a Paris, a Villiers
à pequena padaria onde nos conhecemos
e nos despedimos da primeira vez:
pedi un croissant aux amandes e também o amor
que então me prometeste como se promete a eternidade
id est, com a lisura do olhar

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Bach, por favor!

Fotografia de Ivan Kuznetsov

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BACH, POR FAVOR!

esqueço-me de tudo,
do claro pavor das impurezas, dos remorsos,
dos desastres,
das viagens por fazer,
dos pássaros e amores voláteis,
do rosto sombrio que me persegue no espelho,
dos dias sem sonhar

engelha-se-me o coração.
Bach, por favor!

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Casa velha

Fotografia de Bragi Ingibergsson
Fotografia de Bragi Ingibergsson

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CASA VELHA

é nos sonhos que a casa regressa: as teias de aranha ensarilhadas nas vigas, as mascarras nas paredes tocadas pelo lume, o pó sobre os móveis e na face dos vidros, o cotão a dançar por baixo das camas, a borra caindo devagar no fundo das cafeteiras

à porta da cozinha vejo de novo os pedaços de abóbora e as cascas de batata. mãos diligentes virão com eles preparar a lavadura dos porcos

em baixo, na terra batida, ficam os galinheiros, o estábulo, a pocilga. é o reino da penumbra e do frio, o reino das alfaias e dos lagares, o reino do medo: aqui todos comem em silêncio: os pintos, os vitelos, os bácoros, os roedores, os escaravelhos, a própria morte

é neste saibro que os sonhos me doem sempre mais, como se não soubesse como limpar-me de toda esta memória repleta de dor e de esterco. a ele regresso todas as noites no corpo de uma criança, ou no corpo de um desses mortos que não perdoam, para vaguear à toa entre paredes que não existem já, entre quartos e desvãos e caves (creio-o) que não desaparecerão nunca

fev. 2020

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Para escutar no YouTube

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Outubro

Saskia Dingemans
Fotografia de Saskia Dingemans

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OUTUBRO

no ponto exato do caderno onde deixaste o verão,
o sol é já um deus diminuído e só

outubro é a carne verde dos primeiros dióspiros

se dormes até mais tarde, ao abrires as janelas
vês a coluna de fumo ao longe
erguendo as fogueiras
até ao lugar onde os pássaros fogem

embriagas-te no odor da madeira incinerada,
no cheiro que a terra torna inconfundível
ao vibrar com os pingos
da chuva

no caderno ficou-te o traço firme das certezas

mas na boca agora só a amargura eclode,
só ela como a última cinza arde no corpo de uma vestal

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«Retrato de Louis-François Bertin, 1832», Ingres

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Jean-Auguste Dominique Ingres, Monsieur Louis-François Bertin, 1832

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«RETRATO DE LOUIS-FRANÇOIS BERTIN, 1832», INGRES

esmaga-nos o peso das mãos abertas,
como se à mistura de vidro, prata, alumínio e água
a voracidade do olhar
se acrescentasse

Paris, abril de 2011

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«Compartment C, Car 193 (Edward Hopper)

Edward Hopper, Compartiment Car, 1938
Edward Hopper, Compartment Car, 1938

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«COMPARTMENT C, CAR 193» (EDWARD HOPPER)

oh, a América profunda, essa metáfora que Hopper
tinha no pensamento, quando em 1938 pintou
as entranhas da solidão

quem é essa mulher por quem nos apaixonamos
obliquamente? como dizer não
a esse negro aveludado da roupa ao entardecer?

oh, a América! esse verme gordo engolindo
paisagens! e eu estava dentro dele em 1938, quando
Hopper pintou a minha própria solidão

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