Natureza Morta com frutas, ostras e uma tigela de porcelana, Abraham Mignon

Abraham Mignon, Natureza Morta com frutas, ostras e uma tigela de porcela, 1660

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NATUREZA MORTA COM FRUTAS, OSTRAS E UMA TIGELA DE PORCELANA, ABRAHAM MIGNON

entre a abundância e a miséria os olhos prevaricam
colhidos pela beleza dos frutos,
pela majestade da majólica azul de Delft,
pela cascata de luz que cai sobre os rebordos da sombra,
que desce em silêncio das folhas de videira
aos bagos das uvas e das uvas às ostras abertas
e das ostras à portentosa seda,
onde toda a cena renasce e morre,
morre e renasce

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Lavra, Matosinhos

ddzphotos
Fotografia de ddz_photo

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LAVRA, MATOSINHOS

regressámos hoje a este lugar pelágico
onde as runas e os líquenes vermelhos cobrem os rochedos,
onde a antiga voz de deus corre às dunas e ao sol
para reencontrar-se com o brilho frágil
das gramíneas

depois que partiste
todo o espaço pareceu encarquilhado e rude.
a miséria da dor afundou-nos os olhos
e silenciou as palavras

porém este lugar acicata.
como um sopro lançado às brasas, faz-nos caminhar
horas infinitas pelos corredores do vento
e com o mar em fundo

voltamos por isso a nós,
renascentes parturidos do âmago do fogo, aos poucos,
de outro tempo, noutro corpo

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Mãe

margaridas
Fotografia de Aaron Burden

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MÃE

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Maria Alice Pereira Costa
08-06-1956 – 21-09-2024
in memoriam

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por muito que o outono nos doa nos olhos
e funda soçobre a vontade,
por muito que de nós se aparte o sorriso
e maior se enegreça o silêncio entre as furtivas horas,
por muito que se esmague contra nós
o peso da memória (amargado pela distância),
teremos sempre esta paz das manhãs,
esta concessão da luz,
este preço limpo dos gestos e palavras
impolutas

para onde tu fores nós iremos, mãe.
por muito que nos fujas,
perseguiremos nós a tua mão

21.09.2024

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Oração

Moollyem, pray, oração, deus, fé
Fotografia de Moollyem

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ORAÇÃO

de toda a perdição, dos males que envenenam a cabeça, do desamor raivoso, da metade álgida dos lençóis nas noites de dezembro, da sujidade da casa e mais do que ela da imundície do corpo, da volúpia do erro, da infensa admoestação dos puritanos, dos filhos que ignoram a verdade por vontade própria, da velhice que nos corre nas veias fermentadora e que um dia nos exporá à luz como toupeiras trôpegas, das palavras amaras dos que jamais amaram, da má fortuna dos que no mundo vi sempre passar graves tormentos, da tenebrosa inveja dos comem o nosso sal e escondem o nosso sol, de toda a perdição malsã dos sabotadores, biltres e mesquinhos

libera nos, domine

porque tu podes e nós queremos muito

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Transfiguração

pedras, riacho, natureza, silêncio
Fotografia de Chris Rhoads

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TRANSFIGURAÇÃO

por vezes um grande silêncio sai de baixo das pedras
e é um grande silêncio o dia todo,
as moscas não voejam no lugar das moscas
nem o verde das folhagens parece tão verde.
a cabeça não está a compreender-se
e ninguém de fora assoma para despertá-la
do seu torpor,
simplesmente o tempo não aparenta estar na razão
de que existe como se um interminável dia de julho
ou agosto tivesse alcançado por fim
não a eternidade ou a perenidade, mas
a porta do labirinto que dá para as traseiras
de si mesmo

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Do amor pelas nossas mãos

quino-al (hands)
Fotografia de Quino Al

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DO AMOR PELAS NOSSAS MÃOS

a cabeça encheu-se de vozes
(promessas, sentenças, declarações de amor),
mas a felicidade
é a curvatura das nossas mãos

elas agarram, escavam, procuram

uma palavra a mais, uma palavra a menos:
faltava-me escrever este poema

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Da consolação

Massimiliano Mancini
Fotografia de Massimiliano Mancini

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DA CONSOLAÇÃO

Sei que o mundo é mais forte do que eu. E para resistir ao seu poder só me tenho a mim. O que já não é pouco.
Stig Dagerman

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às vezes nada resta senão convidar-nos à tarde para um café.
o interior da chávena, umbigo do mundo, revela
mensagens secretas que o tempo aclara

traz-nos à superfície amigos de infância, colegas
da faculdade, livros que um dia lemos obliquamente
e que foram escritos para a nossa catarse

fazemo-nos acompanhar da solitude, 
da dureza do mármore das mesas que, como carne intrépida,
nada têm a esconder de nós

às vezes nada resta sobre o tampo imaculado, a não ser
essas moedas tristes, contadas,
como palavras que guardam o pouco sol da nossa consolação

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