Mãe

margaridas
Fotografia de Aaron Burden

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MÃE

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Maria Alice Pereira Costa
08-06-1956 – 21-09-2024
in memoriam

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por muito que o outono nos doa nos olhos
e funda soçobre a vontade,
por muito que de nós se aparte o sorriso
e maior se enegreça o silêncio entre as furtivas horas,
por muito que se esmague contra nós
o peso da memória (amargado pela distância),
teremos sempre esta paz das manhãs,
esta concessão da luz,
este preço limpo dos gestos e palavras
impolutas

para onde tu fores nós iremos, mãe.
por muito que nos fujas,
perseguiremos nós a tua mão

21.09.2024

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Oração

Moollyem, pray, oração, deus, fé
Fotografia de Moollyem

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ORAÇÃO

de toda a perdição, dos males que envenenam a cabeça, do desamor raivoso, da metade álgida dos lençóis nas noites de dezembro, da sujidade da casa e mais do que ela da imundície do corpo, da volúpia do erro, da infensa admoestação dos puritanos, dos filhos que ignoram a verdade por vontade própria, da velhice que nos corre nas veias fermentadora e que um dia nos exporá à luz como toupeiras trôpegas, das palavras amaras dos que jamais amaram, da má fortuna dos que no mundo vi sempre passar graves tormentos, da tenebrosa inveja dos comem o nosso sal e escondem o nosso sol, de toda a perdição malsã dos sabotadores, biltres e mesquinhos

libera nos, domine

porque tu podes e nós queremos muito

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Transfiguração

pedras, riacho, natureza, silêncio
Fotografia de Chris Rhoads

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TRANSFIGURAÇÃO

por vezes um grande silêncio sai de baixo das pedras
e é um grande silêncio o dia todo,
as moscas não voejam no lugar das moscas
nem o verde das folhagens parece tão verde.
a cabeça não está a compreender-se
e ninguém de fora assoma para despertá-la
do seu torpor,
simplesmente o tempo não aparenta estar na razão
de que existe como se um interminável dia de julho
ou agosto tivesse alcançado por fim
não a eternidade ou a perenidade, mas
a porta do labirinto que dá para as traseiras
de si mesmo

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Do amor pelas nossas mãos

quino-al (hands)
Fotografia de Quino Al

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DO AMOR PELAS NOSSAS MÃOS

a cabeça encheu-se de vozes
(promessas, sentenças, declarações de amor),
mas a felicidade
é a curvatura das nossas mãos

elas agarram, escavam, procuram

uma palavra a mais, uma palavra a menos:
faltava-me escrever este poema

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Da consolação

Massimiliano Mancini
Fotografia de Massimiliano Mancini

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DA CONSOLAÇÃO

Sei que o mundo é mais forte do que eu. E para resistir ao seu poder só me tenho a mim. O que já não é pouco.
Stig Dagerman

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às vezes nada resta senão convidar-nos à tarde para um café.
o interior da chávena, umbigo do mundo, revela
mensagens secretas que o tempo aclara

traz-nos à superfície amigos de infância, colegas
da faculdade, livros que um dia lemos obliquamente
e que foram escritos para a nossa catarse

fazemo-nos acompanhar da solitude, 
da dureza do mármore das mesas que, como carne intrépida,
nada têm a esconder de nós

às vezes nada resta sobre o tampo imaculado, a não ser
essas moedas tristes, contadas,
como palavras que guardam o pouco sol da nossa consolação

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Escolhe um bom lugar para morrer

pôr do sol na praia; sunset at beach; ocaso no mar;
Fotografia de Freddy Beaumont

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ESCOLHE UM BOM LUGAR PARA MORRER

escolhe um bom lugar para morrer,
não permitas que as circunstâncias banalizem a tua vida,
mesmo que seja a vida do fim,
mesmo que igual a um grão de alface a despenhar-se na terra,
mesmo que aquela vida que te destrona noutra coisa

escolhe um bom lugar para morrer,
um candeeiro aceso, uma gota de água, o bico de um pássaro

partir não é uma minudência qualquer.
nenhuma criatura deve abandonar este mundo à toa,
mas a bem, sem pressa, ocupando um relâmpago na memória

não permitas que te soneguem o derradeiro impulso da alma:
filho, quando morreres, morre em paz!

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A lenta desaparição de nós mesmos

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Fotografia de Ruth Wellman

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A LENTA DESAPARIÇÃO DE NÓS MESMOS

atravesso as dunas, a lenta oscilação da cor, o vento,
o áspero rancor das areias, os rizomas secos,
atravesso a sombra inócua dos meus passos submersos,
o esquivo lugar que caldeia o sangue e me chama pelo nome,
atravesso formas de tinta, borrões, elegíacas borboletas
zarpando da cabeça em direção ao nada,
atravesso lunações, lucivelos, lágrimas que tudo subtraem à luz,
atravesso os fundos granitos da água como um barco,
atravesso a alta ruína que estremece com todo o medo
e sou dia e noite nos interstícios dos equinócios
e sou uma dor crescente,
atravesso o silêncio, a frívola armação em esqueleto das ideias,
atravesso-me como um inseto, como pó vazando as cavidades,
atravesso o sensível vazio que se antecipa ao varrer do vento,
as dunas, a máquina do silêncio, a dicotomia da morte,
atravesso o poema, a semântica, a cinza que dele em breve
há de restar no lugar do lume,
atravesso o meu próprio arrepio de me saber nada,
absolutamente nada, nem a memória de nada, nada, nada,
e depois calo, desofego, imobilizo-me,
sou um ponto amarfanhado no chão, depois nem isso,
depois, em última análise, nem a memória desse esquecimento

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