Pequeno elogio aos limões

Fotografia de Bruno Neurath Wilson

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PEQUENO ELOGIO AOS LIMÕES

para a Céu

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sopeso-os na mão, acaricio-lhes a pele enrugada,
o pó-verdete repousando entre as volutas do seu
dorso.
depois na fruteira eles são invariavelmente o sol, luz
que a casa acalenta com prazer

a faca que os corta pela metade enche-se do seu sangue
translúcido e perfumado – e amargo –
e as narinas ventilam a sua presença vívida
e pujante

nenhum alimento desdenha o segregar humilde
deste citrino, como não o faz a memória
à voz de velhos mestres que se tiveram, e que outrora
nos impunham a decência inquebrável
da caneta sobre o caderno

diria que o sangue dos limões é cândido
e talvez um pouco triste,
mas jamais inócuo – jamais indiferente

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Viagem pela Europa

Fotografia de Lucas Chizzali

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VIAGEM PELA EUROPA

nada suplanta esta impressão que o sol empresta às coisas,
este beijo da luz sobre os teus ombros,
contra as paredes,
por entre as palavras

é-se feliz e inocente, é-se livre e capaz
em Troia e em Ítaca, em Estocolmo
ou Lisboa

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Paris

Paris at sunset
Fotografia de Chris Linnet

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PARIS

clarões de memória, fosfenos dançando nos olhos, a data
de trinta de maio de dois mil e quatro

ranúnculos de todas as cores nos jardins,
especialmente vermelhos, vidraças repletas em direção ao Sena,
depois um Malinois enorme, a rapariga negra
de olhos esmeralda

pequenas alfinetadas na ponta dos dedos, cheiro de
algum cigarro esquecido no cinzeiro da mesa de café, vozes
misturadas de gatos e pássaros nas varandas

o céu em tons de fogo declinava para os lados da Bastilha,
o cão altivo acompanhava a sua deusa,
eu sobraçava um livro com retratos de Giorgio Morandi
e aquilo tudo por alguma razão ficou,
ou mesmo por nenhuma

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Natureza Morta com frutas, ostras e uma tigela de porcelana, Abraham Mignon

Abraham Mignon, Natureza Morta com frutas, ostras e uma tigela de porcela, 1660

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NATUREZA MORTA COM FRUTAS, OSTRAS E UMA TIGELA DE PORCELANA, ABRAHAM MIGNON

entre a abundância e a miséria os olhos prevaricam
colhidos pela beleza dos frutos,
pela majestade da majólica azul de Delft,
pela cascata de luz que cai sobre os rebordos da sombra,
que desce em silêncio das folhas de videira
aos bagos das uvas e das uvas às ostras abertas
e das ostras à portentosa seda,
onde toda a cena renasce e morre,
morre e renasce

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Logótipo Oficial 2024

Lavra, Matosinhos

ddzphotos
Fotografia de ddz_photo

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LAVRA, MATOSINHOS

regressámos hoje a este lugar pelágico
onde as runas e os líquenes vermelhos cobrem os rochedos,
onde a antiga voz de deus corre às dunas e ao sol
para reencontrar-se com o brilho frágil
das gramíneas

depois que partiste
todo o espaço pareceu encarquilhado e rude.
a miséria da dor afundou-nos os olhos
e silenciou as palavras

porém este lugar acicata.
como um sopro lançado às brasas, faz-nos caminhar
horas infinitas pelos corredores do vento
e com o mar em fundo

voltamos por isso a nós,
renascentes parturidos do âmago do fogo, aos poucos,
de outro tempo, noutro corpo

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Mãe

margaridas
Fotografia de Aaron Burden

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MÃE

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Maria Alice Pereira Costa
08-06-1956 – 21-09-2024
in memoriam

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por muito que o outono nos doa nos olhos
e funda soçobre a vontade,
por muito que de nós se aparte o sorriso
e maior se enegreça o silêncio entre as furtivas horas,
por muito que se esmague contra nós
o peso da memória (amargado pela distância),
teremos sempre esta paz das manhãs,
esta concessão da luz,
este preço limpo dos gestos e palavras
impolutas

para onde tu fores nós iremos, mãe.
por muito que nos fujas,
perseguiremos nós a tua mão

21.09.2024

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Oração

Moollyem, pray, oração, deus, fé
Fotografia de Moollyem

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ORAÇÃO

de toda a perdição, dos males que envenenam a cabeça, do desamor raivoso, da metade álgida dos lençóis nas noites de dezembro, da sujidade da casa e mais do que ela da imundície do corpo, da volúpia do erro, da infensa admoestação dos puritanos, dos filhos que ignoram a verdade por vontade própria, da velhice que nos corre nas veias fermentadora e que um dia nos exporá à luz como toupeiras trôpegas, das palavras amaras dos que jamais amaram, da má fortuna dos que no mundo vi sempre passar graves tormentos, da tenebrosa inveja dos comem o nosso sal e escondem o nosso sol, de toda a perdição malsã dos sabotadores, biltres e mesquinhos

libera nos, domine

porque tu podes e nós queremos muito

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