por vezes um grande silêncio sai de baixo das pedras
e é um grande silêncio o dia todo,
as moscas não voejam no lugar das moscas
nem o verde das folhagens parece tão verde.
a cabeça não está a compreender-se
e ninguém de fora assoma para despertá-la
do seu torpor,
simplesmente o tempo não aparenta estar na razão
de que existe como se um interminável dia de julho
ou agosto tivesse alcançado por fim
não a eternidade ou a perenidade, mas
a porta do labirinto que dá para as traseiras
de si mesmo
escolhe um bom lugar para morrer, não permitas que as circunstâncias banalizem a tua vida, mesmo que seja a vida do fim, mesmo que igual a um grão de alface a despenhar-se na terra, mesmo que aquela vida que te destrona noutra coisa
escolhe um bom lugar para morrer, um candeeiro aceso, uma gota de água, o bico de um pássaro
partir não é uma minudência qualquer. nenhuma criatura deve abandonar este mundo à toa, mas a bem, sem pressa, ocupando um relâmpago na memória
não permitas que te soneguem o derradeiro impulso da alma: filho, quando morreres, morre em paz!
atravesso as dunas, a lenta oscilação da cor, o vento,
o áspero rancor das areias, os rizomas secos,
atravesso a sombra inócua dos meus passos submersos,
o esquivo lugar que caldeia o sangue e me chama pelo nome,
atravesso formas de tinta, borrões, elegíacas borboletas
zarpando da cabeça em direção ao nada,
atravesso lunações, lucivelos, lágrimas que tudo subtraem à luz,
atravesso os fundos granitos da água como um barco,
atravesso a alta ruína que estremece com todo o medo
e sou dia e noite nos interstícios dos equinócios
e sou uma dor crescente,
atravesso o silêncio, a frívola armação em esqueleto das ideias,
atravesso-me como um inseto, como pó vazando as cavidades,
atravesso o sensível vazio que se antecipa ao varrer do vento,
as dunas, a máquina do silêncio, a dicotomia da morte,
atravesso o poema, a semântica, a cinza que dele em breve
há de restar no lugar do lume,
atravesso o meu próprio arrepio de me saber nada,
absolutamente nada, nem a memória de nada, nada, nada,
e depois calo, desofego, imobilizo-me,
sou um ponto amarfanhado no chão, depois nem isso,
depois, em última análise, nem a memória desse esquecimento
E que há de mais livre que o que nada deseja neste mundo?
Tomás de Kempis, Imitação de Cristo
.
nunca é tarde demais.
procura a força do deserto, a distância,
procura a luminosidade dos grãos movediços e duros,
o adobe,
o cheiro das dunas,
o vento dobrando-se no erg,
procura-te na voz do nazareno,
na secura dos essénios,
na abstinente leveza dos berberes de túnica azul
nunca é tarde demais.
despoja-te do tempo e do espaço, despe-te da sombra e da luz.
nada existe no mundo que seja maior,
ou mais do que tu
Filippo Lippi, Madona com Menino e dois anjos, c. 1465
.
DA LUZ
foi indubitavelmente numa manhã assim
nascida da indulgência da luz
sem vafrícia,
sem balofice,
sem unhas iníquas na sombra,
que Vilhelm Hammershøi pintou
o que também nos seus retratos viu Vermeer
ou o que no rosto de Lucrezia Buti atingiu Fra Filippo Lippi
não tocamos as coisas,
somos antes tocados pelo movimento leve e sereno
que entre elas e nós
é a profundidade tangencial do espírito
ou, dito de outro modo,
é o nosso olhar reconciliado com a lente do poema