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AMOR
era no tempo das flores,
o sol estava para lá dos cílios,
no ar sentia-se o desenho vibrante de um zangão.
deitado na erva, eu não pensava em nada,
nem sequer no silêncio
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NO CENTENÁRIO DE EUGÉNIO DE ANDRADE
procurava o mar
como quem busca o som de um provérbio
ou o frio de novembro
para no tempo se agasalhar do tempo
a imensidão da água
– o que quer que ela fosse –
era o mais parecido que há
com a eternidade
descobriu-se no areal com a ternura
do peregrino
a quem faltassem motivos
para acreditar
às vezes vinha-lhe aos pés
uma concha náufraga,
quebrada,
moribunda
e havia nisto um sentido,
uma dor escanzelada e aguda, uma metáfora:
algo lhe mostrava alguém,
alguém que lhe repetia algures estou aqui, estou aqui
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CONSOADA
num canto penumbroso da casa Ziro observava-se diante um espelho antigo
estremecendo à passagem do ar frio pelas frinchas
os meus avós viveram aqui
a lareira mascarrada sem fogo com os tijolos à mostra
não convencia ninguém,
nem ela, nem as janelas presas por arame, desvidradas
só as silvas, com as suas línguas
farpadas, arrepiavam:
mal os conheci.
esta noite seremos só eu e a minha mãe
havia restos da telha por toda a parte.
com os cacos desenhávamos cruzes no chão
no meio do entulho esmagado rebentavam
pés de azevinho
como podia o visqueiro nascer ali
era uma boa pergunta,
era uma excelente pergunta
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A NOITE
deixamos a lâmpada para trás.
uma cancela separa-nos da noite,
dos arbustos negros que entortam na extremidade
Ziro desencantou um maço de cigarros.
os fósforos tremem um pouco,
depois a fumaça sobe pela galáxia
é tão bom viver como nos der na real gana
diz ele
cheira a ervas secas e a bosta fresca
debaixo dos nossos pés, a terra em gelo
geme como os ossos dos velhos
faz-se tarde.
é melhor trincarmos peneiras de funcho,
esfregarmos as mãos com hortelã
digo eu.
é assim que um tipo se faz adulto,
dá trabalho
quanto à noite, que dizer
senão que nos parece um reino incompreensível?
sabe tão bem mijar sem medo de nada
digo eu.
Ziro acena com a cabeça: tão bem
diz ele
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SERÁ SEMPRE UMA ESPÉCIE DE PRÓLOGO
silêncio, a casa esquecida, o olhar
em fuga pelas paredes sem cal,
vigas a céu aberto, a cauda
dos astros,
estalidos, o chão
o chão sem fundo sobre os abismos da terra
permanecem aí numa dignidade de
aristocratas defuntos
as memórias e o amor, a solidão
e o caruncho
silêncio sim, os escombros – por assim dizer –
de uma fé antiga e abandonada
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AUTOESTRADA
viajo entre ponteiros, sem pressa, oco, engolindo paisagens.
na rádio leram há pouco um poema de Inger Christensen:
poema maravilhoso, peneirando luz, vivo em cada palavra,
entre cada imagem
nunca tinha ouvido falar de Inger Christensen
agora na mesma estação escuto a Berceuse de Armas Järnefelt.
tocam ao violoncelo Sepp Laemanen e Jouni Somero ao piano
nunca me tinha cruzado com estes nomes
a manhã enfeia, lenta, vertiginosa, repleta de asfalto e frio nos pés.
de passagem os campos ralos acenam-me,
árvores quase tristes sufocam no nevoeiro.
novembro é uma sombra que em mim se abotoa.
chego ao destino, brutal como betão armado, sólido,
estúpido e infeliz
penso no poema, na música, no embalar do carro.
nunca tinha ouvido falar de Inger Christensen, nem em Järnefelt.
palpo o bolso do casaco, anoto a emoção, seguro-me ao alto.
sou um ignorante – é extraordinário
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