bebo café, continuarei a bebê-lo como quem lança cuspo às mãos ou um fio de água às pedras que se talham
as noites são às vezes cruéis, às vezes impenetráveis no som rouco que desce pelas paredes, às vezes insípidas
não é fácil buscar esse outro lugar de memórias, onde nos guardamos do óxido, esse outro lugar mavioso, feérico das palavras, que por nossa causa fora, um dia ditas com amor extremo
as noites às vezes são densas, é preciso por isso parafinar as mãos, impermeabilizar-lhes o ardor
bebo café, continuarei a bebê-lo até que o poema resgate o belo que há, que houve na vida, até ser dia, até que se britem os estuporados átomos da melancolia, até ser leda a luz que atravessa a forma informe das palavras, até o café frio mais não ser do que o nosso próprio sangue caindo em nós, muito de cima, muito dentro, sem amparo…
o cheiro das cinzas é quase
tão indecifrável quanto
a efusão da tinta.
com elas escrevemos
não palavras, mas o silêncio,
não a manhã, mas memórias,
não o fim, mas um rosto –
também ele impossível
de dizer,
seja de que forma for
era no tempo das flores,
o sol estava para lá dos cílios,
no ar sentia-se o desenho vibrante de um zangão.
deitado na erva, eu não pensava em nada,
nem sequer no silêncio
de noite todos os olhos são gatos
foi o que pensei naquela varanda de hotel
em Bruxelas, enquanto sobre nós
(em direção a Zaventem)
descia o ronco dos aviões
e o fumo de um cigarro nos embrulhava
aos dois, caçado e caçador, e vice-versa