lia um poema de Tassos Denegris,
a terra era seca,
as oliveiras floridas mostravam
como se pode e como se deve.
o sol empunhava a mão
contra as pedras,
havia um aroma subtil
no pó.
as metáforas faiscavam em pouco
e calavam-se: enfarna era a palavra,
a palavra que me seduzia
Para Tsutomu Yamaguchi, engenheiro naval, o mais célebre dos hibakusha
Para Akira Hasegawa, professor, cujos corpo e casa desapareceram pelo ar, como pó de borboletas
.
depois do terror foi preciso limpar a cidade.
os funcionários imperiais vinham em turnos,
metiam as pás nos restos polvorentos da pedra,
varriam a lama de um lado para o outro,
ouviam o vento ganir nas cinzas – o pior de tudo era
este assobio do silêncio, esse guinchar do ferro nas aérolas sem vidro,
nos escombros das pontes que dançavam como dobradiças,
nas cabeças que morriam mais devagar do que os outros órgãos
os funcionários do império iam
e vinham em turnos
às vezes retiravam e apertavam o barrete cheios de comoção,
guardavam em pequenos sarcófagos de cedro
os esqueletos não inteiramente consumidos pelo grande lume
foi preciso – foi preciso – reaprender
o mapa do pensamento:
ali era o zoológico, acolá a escola primária,
aquilo – aquela sombra calcinada no pavimento – uma mulher
com o filho ao colo
às vezes caía-se de joelhos no lugar exato
que havia sido o esconderijo puramente intacto de um rito,
de um beijo, de uma despedida
nunca as palavras se pareceram tão poucas no entulho,
nem tão amargas,
nem tão dementadas
meses a fio repetiu-se o desmantelar, o esquecer,
o prosseguir – o pior de tudo era
o caroço da morte,
o modo como escancarava ela a garganta
e permanecia
Ichiro Kawamoto, a quem Philip Levine dedicou
um poema portentoso, afirmava que na primavera de 46 aconteceu
um milagre:
aí por meados de março, algum verde soltou a língua
na paisagem infernal
– olhávamos e víamos brotos sair dos ramos espedaçados
das gingko bilobas,
renasciam pequenas pontas impregnadas de seiva
e isto – pensavam os funcionários do imperador –,
isto – pensamos nós – isto queria dizer alguma coisa
bebo café, continuarei a bebê-lo como quem lança cuspo às mãos ou um fio de água às pedras que se talham
as noites são às vezes cruéis, às vezes impenetráveis no som rouco que desce pelas paredes, às vezes insípidas
não é fácil buscar esse outro lugar de memórias, onde nos guardamos do óxido, esse outro lugar mavioso, feérico das palavras, que por nossa causa fora, um dia ditas com amor extremo
as noites às vezes são densas, é preciso por isso parafinar as mãos, impermeabilizar-lhes o ardor
bebo café, continuarei a bebê-lo até que o poema resgate o belo que há, que houve na vida, até ser dia, até que se britem os estuporados átomos da melancolia, até ser leda a luz que atravessa a forma informe das palavras, até o café frio mais não ser do que o nosso próprio sangue caindo em nós, muito de cima, muito dentro, sem amparo…
o cheiro das cinzas é quase
tão indecifrável quanto
a efusão da tinta.
com elas escrevemos
não palavras, mas o silêncio,
não a manhã, mas memórias,
não o fim, mas um rosto –
também ele impossível
de dizer,
seja de que forma for
era no tempo das flores,
o sol estava para lá dos cílios,
no ar sentia-se o desenho vibrante de um zangão.
deitado na erva, eu não pensava em nada,
nem sequer no silêncio