a estrada vinha ter comigo
e eu conduzia-me vagaroso pelos meus sonhos mais longínquos.
havia charcos, folhas, insetos afogados no alcatrão.
pelo vidro a chuva espiava-me e tinha arrepios
o inverno acabava de transpor a última cancela
na várzea sombria
dai-me senhor a grande paz
da sala dos arrumos, dos armários
de arquivo, dos caixotes selados e
proibidos de abrir, o grande silêncio
da penumbra e placares vazios
de cortiça, o amor da sombra e
da fita-cola adesiva, dos objetos
caídos no seu próprio sono
de arrecadação
sob a pionés nenhuma palavra.
debaixo da janela a ausência de rumor.
dentro de mim isto apenas
é nos sonhos que a casa regressa: as teias de aranha ensarilhadas nas vigas, as mascarras nas paredes tocadas pelo lume, o pó sobre os móveis e na face dos vidros, o cotão a dançar por baixo das camas, a borra caindo devagar no fundo das cafeteiras
à porta da cozinha vejo de novo os pedaços de abóbora e as cascas de batata. mãos diligentes virão com eles preparar a lavadura dos porcos
em baixo, na terra batida, ficam os galinheiros, o estábulo, a pocilga. é o reino da penumbra e do frio, o reino das alfaias e dos lagares, o reino do medo: aqui todos comem em silêncio: os pintos, os vitelos, os bácoros, os roedores, os escaravelhos, a própria morte
é neste saibro que os sonhos me doem sempre mais, como se não soubesse como limpar-me de toda esta memória repleta de dor e de esterco. a ele regresso todas as noites no corpo de uma criança, ou no corpo de um desses mortos que não perdoam, para vaguear à toa entre paredes que não existem já, entre quartos e desvãos e caves (creio-o) que não desaparecerão nunca
cotos de sabão secando nas margens do tanque,
frascos vazios e teias de aranha no parapeito das janelas,
algum fruto esquecido, triste
até à exaustão
dentro das gavetas naftalina,
peças brancas de linho, cambraias, lenços, os coturnos de lã
a esmo, no remanso de uma caixa de sapatos, os óculos,
os teus alfinetes, retratos ovais cor de sépia,
suponho que duas ou três cartas, não de amor
mas dos filhos no ultramar,
o bilhete de identidade a dizer “vitalício”
alguém juntou tudo à pressa,
fecharam os portões com arame e um cadeado grosso,
puseram à mostra o letreiro, num rabisco gordo,
escarlate
veio da imobiliária uma moça loira, de minissaia
percebia bastante das coisas, torceu o nariz,
disse mais do que uma vez
que não era de esperar grande coisa
a manhã é limpa, silenciosa, veemente.
do fundo da terra ergue-se um nome
que agora é sol,
que agora é um sussurro de erva,
que agora é uma saudade em nós imersa
a manhã é paz, blandícia, ternura.
quem respira respira fundo,
ainda que doendo por dentro os olhos,
ainda que ardendo o lugar escuso
onde o vazio se confunde com o amor
a manhã é limpa, silenciosa, veemente.
somos leves e castos
como o verde depois da tempestade.
nalgum canto do universo, em nós,
um grande bem acordou