As gingko bilobas de Hiroshima

Gingko Bilobas, Filip Filipović
Fotografia de Filip Filipović

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AS GINGKO BILOBAS DE HIROSHIMA

Para Tsutomu Yamaguchi, engenheiro naval, o mais célebre dos hibakusha
Para Akira Hasegawa, professor, cujos corpo e casa desapareceram pelo ar, como pó de borboletas

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depois do terror foi preciso limpar a cidade.
os funcionários imperiais vinham em turnos,
metiam as pás nos restos polvorentos da pedra,
varriam a lama de um lado para o outro,
ouviam o vento ganir nas cinzas – o pior de tudo era
este assobio do silêncio, esse guinchar do ferro nas aérolas sem vidro,
nos escombros das pontes que dançavam como dobradiças,
nas cabeças que morriam mais devagar do que os outros órgãos

os funcionários do império iam
e vinham em turnos

às vezes retiravam e apertavam o barrete cheios de comoção,
guardavam em pequenos sarcófagos de cedro
os esqueletos não inteiramente consumidos pelo grande lume

foi preciso – foi preciso – reaprender
o mapa do pensamento:
ali era o zoológico, acolá a escola primária,
aquilo – aquela sombra calcinada no pavimento – uma mulher
com o filho ao colo

às vezes caía-se de joelhos no lugar exato
que havia sido o esconderijo puramente intacto de um rito,
de um beijo, de uma despedida

nunca as palavras se pareceram tão poucas no entulho,
nem tão amargas,
nem tão dementadas

meses a fio repetiu-se o desmantelar, o esquecer,
o prosseguir – o pior de tudo era
o caroço da morte,
o modo como escancarava ela a garganta
e permanecia

Ichiro Kawamoto, a quem Philip Levine dedicou
um poema portentoso, afirmava que na primavera de 46 aconteceu
um milagre:
aí por meados de março, algum verde soltou a língua
na paisagem infernal

– olhávamos e víamos brotos sair dos ramos espedaçados
das gingko bilobas,
renasciam pequenas pontas impregnadas de seiva

e isto – pensavam os funcionários do imperador –,
isto – pensamos nós – isto queria dizer alguma coisa

21.03.2023

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O absurdo

Guillaume de Germain
Fotografia de Guillaume de Germain

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O ABSURDO

dói imensamente tudo.
a folha dói nos dedos,
o rosto dói contra o silêncio,
dói a sombra da cidade
e o ardor que deixamos preso
à solidão

dói imensamente tudo.
até a poesia,
até esse vazio onde
tantas vezes,
vivo e absoluto,
cabe o absurdo

 

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Café

Chávena de café; cup of cofee
Fotografia de ldia

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CAFÉ

bebo café, continuarei a bebê-lo como
quem lança cuspo às mãos ou um fio de água
às pedras que se talham

as noites são às vezes cruéis, às vezes impenetráveis
no som rouco que desce pelas paredes, às vezes
insípidas

não é fácil buscar esse outro lugar
de memórias, onde nos guardamos do óxido, esse
outro lugar mavioso, feérico das palavras, que
por nossa causa fora, um dia ditas
com amor extremo

as noites às vezes são densas, é preciso
por isso parafinar as mãos, impermeabilizar-lhes
o ardor

bebo café, continuarei a bebê-lo até
que o poema resgate o belo que há, que houve
na vida, até ser dia, até que se britem
os estuporados átomos da melancolia, até ser leda
a luz que atravessa a forma informe das palavras, até
o café frio mais não ser do que o nosso
próprio sangue caindo em nós,
muito de cima, muito dentro, sem
amparo

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Cinzas

Andreas Lischka - wood
Fotografia de Andreas Lischka

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CINZAS

para Amélia Pereira, minha avó

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o cheiro das cinzas é quase
tão indecifrável quanto
a efusão da tinta.
com elas escrevemos
não palavras, mas o silêncio,
não a manhã, mas memórias,
não o fim, mas um rosto –
também ele impossível
de dizer,
seja de que forma for

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Amor

Fotografia de Valeria Luisa
Fotografia de Valeria Luisa

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AMOR

era no tempo das flores,
o sol estava para lá dos cílios,
no ar sentia-se o desenho vibrante de um zangão.
deitado na erva, eu não pensava em nada,
nem sequer no silêncio

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No centenário de Eugénio de Andrade

Foz do Porto, Portugal
Fotografia de Adri Marie

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NO CENTENÁRIO DE EUGÉNIO DE ANDRADE

procurava o mar
como quem busca o som de um provérbio
ou o frio de novembro
para no tempo se agasalhar do tempo

a imensidão da água
– o que quer que ela fosse –
era o mais parecido que há
com a eternidade

descobriu-se no areal com a ternura
do peregrino
a quem faltassem motivos
para acreditar

às vezes vinha-lhe aos pés
uma concha náufraga,
quebrada,
moribunda

e havia nisto um sentido,
uma dor escanzelada e aguda, uma metáfora:
algo lhe mostrava alguém,
alguém que lhe repetia algures estou aqui, estou aqui

19.01.2023

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Bruxelas

Bruxelas
Fotografia de Lewis S.

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BRUXELAS

de noite todos os olhos são gatos
foi o que pensei naquela varanda de hotel
em Bruxelas, enquanto sobre nós
(em direção a Zaventem)
descia o ronco dos aviões
e o fumo de um cigarro nos embrulhava
aos dois, caçado e caçador, e vice-versa

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