Kavafis, Alexandria, 1933

Analogicus (Tom)
Fotografia de Analogicus | Tom

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KAVAFIS, ALEXANDRIA, 1933

odres rasgados, mesas de pinho postas ao contrário,
almotolias sangrando sobre o serrim,
ameaças, insultos, o brilho de uma cimitarra.
os facínoras, os sovinas, os caloteiros, os delatores, os maricas,
os putanheiros, os sicofantas
‒ como se atraem uns aos outros!

em silêncio, velho Konstantinos, pensas em Homero, em Ulisses,
pensas em pedaços de papel,
nos aparos derrubados, na tinta, no mata-borrão.
depois, encharcado com o ar húmido de uma manhã de março,
a casa regressas,
onde o cancro te espera para melhor te matar

sempre o caos e a ordem,
o que é e o que podia ter sido, o que era antes e o monstruoso depois,
inseparáveis sempre, como as duas serpentes do caduceu!
muitas vezes em silêncio se escuta muitas vezes o esgaravatar da poesia
‒ e uma vela bastaria (nisso pensas, velho Kavafis)
para iluminar toda a caverna da Górgona

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Alotriofagia

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Fotografia de Michal Jarmoluk
Fotografia de Michal Jarmoluk.

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ALOTRIOFAGIA

no último estágio da doença,
o nosso outro avô comia não apenas terra,
mas pedaços de telha
e aparas encaracoladas pela garlopa.
morreu dolorosamente, honradamente,
como queria

quando enlouquecer
quero juntar as estas estranhas iguarias
o corpo dos livros.
morrerei devorando-os, insaciado
pela gula, mas feliz
da congestão

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Em Lisboa, com Tomas Tranströmer

Fotografia de Rui Palha

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EM LISBOA, COM TOMAS TRANSTRÖMER

cidade de brancos estendais de roupa e lonas amarelas nas esplanadas,
belos olhos azuis fotografando o rumor dos elétricos, o vazio,
o voo quebrado das gaivotas,
cabos rebocadores da alfândega, andaimes, alvenéis, metáforas,
um milhão de escrupulosas palavras sob as arcadas,
debruns de granito, patas dos pardais, tudo

31.10.2013

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Aldeia

Rebecca Prest
Fotografia de Rebecca Prest

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ALDEIA

Toninho vendeu-me três ovos sarapintados
por trinta escudos

negociei-os eu uma manhã, a custo, aos sussurros, entre contas de tabuada

o sol entrava pelos janelões e fazia suspirar

quando cheguei a casa, o avô atirou-se-me às orelhas
por causa deles

eram três ovos de escrevedeira, ainda quentes,
belos como eu e as minhas irmãs juntos!

fomos à procura do ninho e descobrimo-lo,
com a ajuda de Mitrino

depois o avô levou-me pela mão até às videiras,
o podão na ilharga,
as fitas do canavial presas ao cinto como espadas

um e outro caminhámos sem pressa, de cepa em cepa,
duas sombras ao fundo da paisagem,
luminosos como agriões na água

não dissemos palavra,
nem o ranger das botas se ouvia

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Medusa

Green Eyes
Fotografia de Eric Ward

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MEDUSA

sei que me procuras ainda,
que os teus cabelos em forma de serpentes entrançadas
e os teus olhos frios, impiedosos,
me prendem ainda à terra, como ar que passa
e não torna

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Inverno

Fotografia de Martin Rak
Fotografia de Martin Rak

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INVERNO

a estrada vinha ter comigo
e eu conduzia-me vagaroso pelos meus sonhos mais longínquos.
havia charcos, folhas, insetos afogados no alcatrão.
pelo vidro a chuva espiava-me e tinha arrepios

o inverno acabava de transpor a última cancela
na várzea sombria

tudo é metáfora gania o vento

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Silêncio de arrecadação

Fotografia de Alessandro Cereda
Fotografia de Alessandro Cereda

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SILÊNCIO DE ARRECADAÇÃO

dai-me senhor a grande paz
da sala dos arrumos, dos armários
de arquivo, dos caixotes selados e
proibidos de abrir, o grande silêncio
da penumbra e placares vazios
de cortiça, o amor da sombra e
da fita-cola adesiva, dos objetos
caídos no seu próprio sono
de arrecadação

sob a pionés nenhuma palavra.
debaixo da janela a ausência de rumor.
dentro de mim isto apenas

FRÁGIL. NÃO MEXER!

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