Medusa

Green Eyes
Fotografia de Eric Ward

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MEDUSA

sei que me procuras ainda,
que os teus cabelos em forma de serpentes entrançadas
e os teus olhos frios, impiedosos,
me prendem ainda à terra, como ar que passa
e não torna

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Inverno

Fotografia de Martin Rak
Fotografia de Martin Rak

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INVERNO

a estrada vinha ter comigo
e eu conduzia-me vagaroso pelos meus sonhos mais longínquos.
havia charcos, folhas, insetos afogados no alcatrão.
pelo vidro a chuva espiava-me e tinha arrepios

o inverno acabava de transpor a última cancela
na várzea sombria

tudo é metáfora gania o vento

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Silêncio de arrecadação

Fotografia de Alessandro Cereda
Fotografia de Alessandro Cereda

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SILÊNCIO DE ARRECADAÇÃO

dai-me senhor a grande paz
da sala dos arrumos, dos armários
de arquivo, dos caixotes selados e
proibidos de abrir, o grande silêncio
da penumbra e placares vazios
de cortiça, o amor da sombra e
da fita-cola adesiva, dos objetos
caídos no seu próprio sono
de arrecadação

sob a pionés nenhuma palavra.
debaixo da janela a ausência de rumor.
dentro de mim isto apenas

FRÁGIL. NÃO MEXER!

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Casa velha

Fotografia de Bragi Ingibergsson
Fotografia de Bragi Ingibergsson

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CASA VELHA

é nos sonhos que a casa regressa: as teias de aranha ensarilhadas nas vigas, as mascarras nas paredes tocadas pelo lume, o pó sobre os móveis e na face dos vidros, o cotão a dançar por baixo das camas, a borra caindo devagar no fundo das cafeteiras

à porta da cozinha vejo de novo os pedaços de abóbora e as cascas de batata. mãos diligentes virão com eles preparar a lavadura dos porcos

em baixo, na terra batida, ficam os galinheiros, o estábulo, a pocilga. é o reino da penumbra e do frio, o reino das alfaias e dos lagares, o reino do medo: aqui todos comem em silêncio: os pintos, os vitelos, os bácoros, os roedores, os escaravelhos, a própria morte

é neste saibro que os sonhos me doem sempre mais, como se não soubesse como limpar-me de toda esta memória repleta de dor e de esterco. a ele regresso todas as noites no corpo de uma criança, ou no corpo de um desses mortos que não perdoam, para vaguear à toa entre paredes que não existem já, entre quartos e desvãos e caves (creio-o) que não desaparecerão nunca

fev. 2020

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Para escutar no YouTube

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Vende-se

Peter H, abandoned house
Fotografia de Peter H

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VENDE-SE

cotos de sabão secando nas margens do tanque,
frascos vazios e teias de aranha no parapeito das janelas,
algum fruto esquecido, triste
até à exaustão

dentro das gavetas naftalina,
peças brancas de linho, cambraias, lenços, os coturnos de lã

a esmo, no remanso de uma caixa de sapatos, os óculos,
os teus alfinetes, retratos ovais cor de sépia,
suponho que duas ou três cartas, não de amor
mas dos filhos no ultramar,
o bilhete de identidade a dizer “vitalício”

alguém juntou tudo à pressa,
fecharam os portões com arame e um cadeado grosso,
puseram à mostra o letreiro, num rabisco gordo,
escarlate

veio da imobiliária uma moça loira, de minissaia

percebia bastante das coisas, torceu o nariz,
disse mais do que uma vez
que não era de esperar grande coisa

as saudades hoje
estão ao preço da chuva

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Agasalho

Fotografia de Margareth Perfoncio
Fotografia de Margareth Perfoncio

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AGASALHO

onde havia o nada, as mães tricotaram
a memória

uma cicatriz de fogo agasalha-nos
de toda a desolação

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Um grande bem em nós acordou

Norbert Maier
Fotografia de Norbert Maier

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UM GRANDE BEM EM NÓS ACORDOU.

para o Agostinho, in memoriam

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a manhã é limpa, silenciosa, veemente.
do fundo da terra ergue-se um nome
que agora é sol,
que agora é um sussurro de erva,
que agora é uma saudade em nós imersa

a manhã é paz, blandícia, ternura.
quem respira respira fundo,
ainda que doendo por dentro os olhos,
ainda que ardendo o lugar escuso
onde o vazio se confunde com o amor

a manhã é limpa, silenciosa, veemente.
somos leves e castos
como o verde depois da tempestade.
nalgum canto do universo, em nós,
um grande bem acordou

15 de outubro de 2021

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