Escritor português contemporâneo, nascido em 1977, na freguesia de Azurém (Guimarães). Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, é professor e autor de livros de poesia, contos e crónicas. Venceu o Prémio Revelação de Poesia Ary dos Santos (2001), o Prémio de Conto Maria Irene Lisboa (2009) e o Prémio Nacional de Poesia da Vila de Fânzeres (2001 e 2022). Parte da sua obra foi traduzida para inglês, francês, castelhano, francês, alemão, sueco, dinamarquês, neerlandês, polaco, romeno, servo-croata e arménio.
depois é um eco de velhas sucatas adormecidas, cablagens e candeeiros a petróleo, caixas de sapatos e bonecos de caco, coisas dispersas, despejadas pelo tempo ao acaso através da pele
sem rasto é o cheiro do silêncio, o rosto que nos pertencia e hoje não passa de gelo talhado a esmo, por entre as frestas da memória
a cabeça, ao contrário do começo deste mês,
pesa e cai desgraçadamente.
como as luminosas pétalas do limónio
desagrega-se
e há espinhos à volta dela que a defendem e sitiam
e estrangulam
sobre a mesa não se conjuntam já
os copos, os sumos, o ardor da geleia,
a fruta
cada um tomará o pequeno-almoço na sua hora
e muitos de nós já partiram.
as noites de calor intenso intervalam agora
com serões de nevoeiro
e a cama na solidão ouve o ranger da insónia
e da lua
– a lua cheia de agosto –
quem me dirá porque, sobreposto à neblina, o seu halo
me parece um enfermo saltando no sargaço,
ferindo-se nas conchas partidas,
doendo entre as mãos?
se mergulho no seu aroma húmido, verei
o paulatino desfilar das minhas mulheres,
da mais nova, daquela cujos seios há muito beijei
não sabendo o que fazia,
da outra, da que me rasgou o orgulho como se rasga
um corpo com punhal,
daquela a quem confiei segredos inexistentes
e de que fujo ainda em duas décadas de vergonha
agosto é um precipício,
uma sedição,
este cheiro que nos afunda,
nos aconchega,
nos estrangula
agora já só restam alguns dias.
cabe-me recolher as espreguiçadeiras,
dobrar os panos de cozinha, fechar as portas
o último dia deste mês será como ter atingido
a outra parte do mesmo continente longínquo
aí também eu serei estrangeiro.
aí também eu serei um apátrida
exaspera-me esta calma aparente. agosto quase no fim é um mês muito outro daquele que no começo me levava de azul em azul através do espaço. agora o céu é cinzento e a calma é superficial, como a véspera de alguma coisa que não se conhece bem. sei que os braços, e sobretudo a cabeça, me doem e pesam. é como se em vez de ar carregassem mágoas, ou pesadelos, ou a ameaça de uma morte. enerva-me a inexatidão dos sentidos. e por isso levanto-me e vou caminhar. também o coração se parece de chumbo. também ele me exaspera