Casa velha

Fotografia de Bragi Ingibergsson
Fotografia de Bragi Ingibergsson

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CASA VELHA

é nos sonhos que a casa regressa: as teias de aranha ensarilhadas nas vigas, as mascarras nas paredes tocadas pelo lume, o pó sobre os móveis e na face dos vidros, o cotão a dançar por baixo das camas, a borra caindo devagar no fundo das cafeteiras

à porta da cozinha vejo de novo os pedaços de abóbora e as cascas de batata. mãos diligentes virão com eles preparar a lavadura dos porcos

em baixo, na terra batida, ficam os galinheiros, o estábulo, a pocilga. é o reino da penumbra e do frio, o reino das alfaias e dos lagares, o reino do medo: aqui todos comem em silêncio: os pintos, os vitelos, os bácoros, os roedores, os escaravelhos, a própria morte

é neste saibro que os sonhos me doem sempre mais, como se não soubesse como limpar-me de toda esta memória repleta de dor e de esterco. a ele regresso todas as noites no corpo de uma criança, ou no corpo de um desses mortos que não perdoam, para vaguear à toa entre paredes que não existem já, entre quartos e desvãos e caves (creio-o) que não desaparecerão nunca

fev. 2020

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Para escutar no YouTube

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Vende-se

Peter H, abandoned house
Fotografia de Peter H

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VENDE-SE

cotos de sabão secando nas margens do tanque,
frascos vazios e teias de aranha no parapeito das janelas,
algum fruto esquecido, triste
até à exaustão

dentro das gavetas naftalina,
peças brancas de linho, cambraias, lenços, os coturnos de lã

a esmo, no remanso de uma caixa de sapatos, os óculos,
os teus alfinetes, retratos ovais cor de sépia,
suponho que duas ou três cartas, não de amor
mas dos filhos no ultramar,
o bilhete de identidade a dizer “vitalício”

alguém juntou tudo à pressa,
fecharam os portões com arame e um cadeado grosso,
puseram à mostra o letreiro, num rabisco gordo,
escarlate

veio da imobiliária uma moça loira, de minissaia

percebia bastante das coisas, torceu o nariz,
disse mais do que uma vez
que não era de esperar grande coisa

as saudades hoje
estão ao preço da chuva

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Agasalho

Fotografia de Margareth Perfoncio
Fotografia de Margareth Perfoncio

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AGASALHO

onde havia o nada, as mães tricotaram
a memória

uma cicatriz de fogo agasalha-nos
de toda a desolação

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Um grande bem em nós acordou

Norbert Maier
Fotografia de Norbert Maier

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UM GRANDE BEM EM NÓS ACORDOU.

para o Agostinho, in memoriam

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a manhã é limpa, silenciosa, veemente.
do fundo da terra ergue-se um nome
que agora é sol,
que agora é um sussurro de erva,
que agora é uma saudade em nós imersa

a manhã é paz, blandícia, ternura.
quem respira respira fundo,
ainda que doendo por dentro os olhos,
ainda que ardendo o lugar escuso
onde o vazio se confunde com o amor

a manhã é limpa, silenciosa, veemente.
somos leves e castos
como o verde depois da tempestade.
nalgum canto do universo, em nós,
um grande bem acordou

15 de outubro de 2021

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Outubro

Saskia Dingemans
Fotografia de Saskia Dingemans

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OUTUBRO

no ponto exato do caderno onde deixaste o verão,
o sol é já um deus diminuído e só

outubro é a carne verde dos primeiros dióspiros

se dormes até mais tarde, ao abrires as janelas
vês a coluna de fumo ao longe
erguendo as fogueiras
até ao lugar onde os pássaros fogem

embriagas-te no odor da madeira incinerada,
no cheiro que a terra torna inconfundível
ao vibrar com os pingos
da chuva

no caderno ficou-te o traço firme das certezas

mas na boca agora só a amargura eclode,
só ela como a última cinza arde no corpo de uma vestal

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Chuva

Fotografia de Antonio Grambone
Fotografia de Antonio Grambone

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CHUVA

em certos lugares encontra-nos a noite
caindo nas mãos um do outro
como duros pedaços de antracite
que o lume seca e lava
e fragmenta

a desolação produz poças negras e viscosas,
em cujo silêncio mergulha às vezes
um corpo exangue

dói quase tudo,
uma frase presa na traqueia,
a chuva desamparada no varandim,
o inseto afogado na água,
o tempo que devagar nos morre
no ódio comum

nada nos salva,
nem a poesia,
nem a invisível chama dos olhos marejados,
nada

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Casa de praia

Fotografia de Rico Cavallo
Fotografia de Rico Cavallo

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CASA DE PRAIA

manhã de agosto.
agora já só restam alguns dias

a cabeça, ao contrário do começo deste mês,
pesa e cai desgraçadamente.
como as luminosas pétalas do limónio
desagrega-se
e há espinhos à volta dela que a defendem e sitiam
e estrangulam

sobre a mesa não se conjuntam já
os copos, os sumos, o ardor da geleia,
a fruta

cada um tomará o pequeno-almoço na sua hora
e muitos de nós já partiram.
as noites de calor intenso intervalam agora
com serões de nevoeiro
e a cama na solidão ouve o ranger da insónia
e da lua

– a lua cheia de agosto –

quem me dirá porque, sobreposto à neblina, o seu halo
me parece um enfermo saltando no sargaço,
ferindo-se nas conchas partidas,
doendo entre as mãos?

se mergulho no seu aroma húmido, verei
o paulatino desfilar das minhas mulheres,
da mais nova, daquela cujos seios há muito beijei
não sabendo o que fazia,
da outra, da que me rasgou o orgulho como se rasga
um corpo com punhal,
daquela a quem confiei segredos inexistentes
e de que fujo ainda em duas décadas de vergonha

agosto é um precipício,
uma sedição,
este cheiro que nos afunda,
nos aconchega,
nos estrangula

agora já só restam alguns dias.
cabe-me recolher as espreguiçadeiras,
dobrar os panos de cozinha, fechar as portas

o último dia deste mês será como ter atingido
a outra parte do mesmo continente longínquo

aí também eu serei estrangeiro.
aí também eu serei um apátrida

agosto de 2021

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