Deus

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Fotografia de Mike Denn

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DEUS

Dieu
je t’apelle
comme si tu existais
Anise Kolz

Mendonça encontrava deus nos baldios,
Eliot descobriu-o (a ele e a três leopardos albinos)
debaixo de um junípero azul,
Cocteau tocou-o na face mais fresca
da almofada

aos quarenta e cinco preocupa-me
em lado nenhum o ter descortinado ainda

talvez desconfie do vento, do vento que desalinha
os cabelos e nos enregela os ossos,
quando rente ao mar caminhamos lado a lado
e nevoenta – espumosa – a tarde cai sobre a cidade
e dedos longínquos de vapor – invisíveis –
acendem e ocultam e amam os lampiões

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Cave

Peter H
Fotografia de Peter H

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CAVE

noutra parte da casa guardam o vinho, o azeite, o mel,
as nozes –
ânforas e vasilhas, cântaros, tulhas,
mas também a palha e o serrim, o pó,
teias de aranha gigantescas, pegadas de roedores
a forma talhada do silêncio

é um tesouro mal visitado,
casto, sem ar

debaixo da terra, num buraco, guardou o avô
cartas que a luz não pode ler.
e eu penso nesse lugar morto,
no quanto as palavras devem assentar
e não ferir –
digamos, como sucede nos sonhos
onde as palavras devoram metal,
mas que ninguém escuta
de tão calafetadas e duras que são

guardam aí o inominável,
ecos, vagas alusões, cheiros humedecidos
de papel e tinta, estalidos nas traves,
gritos que o tempo apagou

em resumo, um silo enorme a nossa vida –
cântaros, arcas, potes e bilhas,
sacos de serapilheira empilhados no escuro,
no nada

guardamos tudo –
o vazio, ele também

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Vou contar-te

Arthur Streeton, Early Summer Gorse in Bloom, 1888
Arthur Streeton, Tojo em flor no início do verão, 1888

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VOU CONTAR-TE

vou contar-te:
agora mesmo
a minha pele arrepiou-se
ao sentir a luz
e quando deslizou sobre
as palmas floridas
da citronela
e depois ao escutar no quarto
o ranger da madeira
na velha escrivaninha

um segredo:
de repente
descobri que vivia

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Transtromeriana

Fotografia de Zoya Loonohod

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TRANSTROMERIANA

embrenhar-me na penumbra como na garganta de um bosque.
lado de cá, lanterna acesa, formações de gelo,
marcas de botas, estrias na terra.
depois a lanterna desligada, a ardósia celeste, a poalha luminosa,
álgidas estrelas de aço

torniquetes para o além: ninguém arrisca dizer qual

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Villiers

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Fotografia de Ekrulila

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VILLIERS

bem-aventurados os desventurados que nada
possuirão neste mundo e no outro também não.
por isso regressei a Paris, a Villiers
à pequena padaria onde nos conhecemos
e nos despedimos da primeira vez:
pedi un croissant aux amandes e também o amor
que então me prometeste como se promete a eternidade
id est, com a lisura do olhar

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Bach, por favor!

Fotografia de Ivan Kuznetsov

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BACH, POR FAVOR!

esqueço-me de tudo,
do claro pavor das impurezas, dos remorsos,
dos desastres,
das viagens por fazer,
dos pássaros e amores voláteis,
do rosto sombrio que me persegue no espelho,
dos dias sem sonhar

engelha-se-me o coração.
Bach, por favor!

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Kavafis, Alexandria, 1933

Analogicus (Tom)
Fotografia de Analogicus | Tom

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KAVAFIS, ALEXANDRIA, 1933

odres rasgados, mesas de pinho postas ao contrário,
almotolias sangrando sobre o serrim,
ameaças, insultos, o brilho de uma cimitarra.
os facínoras, os sovinas, os caloteiros, os delatores, os maricas,
os putanheiros, os sicofantas
‒ como se atraem uns aos outros!

em silêncio, velho Konstantinos, pensas em Homero, em Ulisses,
pensas em pedaços de papel,
nos aparos derrubados, na tinta, no mata-borrão.
depois, encharcado com o ar húmido de uma manhã de março,
a casa regressas,
onde o cancro te espera para melhor te matar

sempre o caos e a ordem,
o que é e o que podia ter sido, o que era antes e o monstruoso depois,
inseparáveis sempre, como as duas serpentes do caduceu!
muitas vezes em silêncio se escuta muitas vezes o esgaravatar da poesia
‒ e uma vela bastaria (nisso pensas, velho Kavafis)
para iluminar toda a caverna da Górgona

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