Pelas frinchas da garagem

Antiga oficina. Antiga garagem.
Fotografia recolhida na plataforma Pixabay

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PELAS FRINCHAS DA GARAGEM

pelas frinchas da garagem
entram os dedos da lua

depois é um eco de velhas sucatas
adormecidas, cablagens e
candeeiros a petróleo, caixas de
sapatos e bonecos de caco,
coisas dispersas, despejadas pelo
tempo ao acaso através da pele

sem rasto é o cheiro do silêncio,
o rosto que nos pertencia
e hoje não passa de gelo talhado
a esmo, por entre as frestas
da memória

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Chuva

Fotografia de Antonio Grambone
Fotografia de Antonio Grambone

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CHUVA

em certos lugares encontra-nos a noite
caindo nas mãos um do outro
como duros pedaços de antracite
que o lume seca e lava
e fragmenta

a desolação produz poças negras e viscosas,
em cujo silêncio mergulha às vezes
um corpo exangue

dói quase tudo,
uma frase presa na traqueia,
a chuva desamparada no varandim,
o inseto afogado na água,
o tempo que devagar nos morre
no ódio comum

nada nos salva,
nem a poesia,
nem a invisível chama dos olhos marejados,
nada

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Casa de praia

Fotografia de Rico Cavallo
Fotografia de Rico Cavallo

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CASA DE PRAIA

manhã de agosto.
agora já só restam alguns dias

a cabeça, ao contrário do começo deste mês,
pesa e cai desgraçadamente.
como as luminosas pétalas do limónio
desagrega-se
e há espinhos à volta dela que a defendem e sitiam
e estrangulam

sobre a mesa não se conjuntam já
os copos, os sumos, o ardor da geleia,
a fruta

cada um tomará o pequeno-almoço na sua hora
e muitos de nós já partiram.
as noites de calor intenso intervalam agora
com serões de nevoeiro
e a cama na solidão ouve o ranger da insónia
e da lua

– a lua cheia de agosto –

quem me dirá porque, sobreposto à neblina, o seu halo
me parece um enfermo saltando no sargaço,
ferindo-se nas conchas partidas,
doendo entre as mãos?

se mergulho no seu aroma húmido, verei
o paulatino desfilar das minhas mulheres,
da mais nova, daquela cujos seios há muito beijei
não sabendo o que fazia,
da outra, da que me rasgou o orgulho como se rasga
um corpo com punhal,
daquela a quem confiei segredos inexistentes
e de que fujo ainda em duas décadas de vergonha

agosto é um precipício,
uma sedição,
este cheiro que nos afunda,
nos aconchega,
nos estrangula

agora já só restam alguns dias.
cabe-me recolher as espreguiçadeiras,
dobrar os panos de cozinha, fechar as portas

o último dia deste mês será como ter atingido
a outra parte do mesmo continente longínquo

aí também eu serei estrangeiro.
aí também eu serei um apátrida

agosto de 2021

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A barba por fazer, o casaco ao vento

Fotografia de Radovan Skohel
Fotografia de Radovan Skohel

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A BARBA POR FAZER, O CASACO AO VENTO

a barba por fazer, o casaco ao vento,
silêncio no lugar das respostas,
olhos brilhantes e ardilosos,
espiguetas e cizânia,
cardos do mar

no areal há caminhos semelhantes
ao que desenham os meus pés

uma ou outra vez na minha vida
transformo-me em mineral para que as marés
me lapidem

sou de vidro, sim.
calem-se todos! vós também,
vozes na minha cabeça!

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Este é o feudo do vento

Fotografia de Karsten Wrobel
Fotografia de Karsten Wrobel

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ESTE É O FEUDO DO VENTO

este é o feudo do vento.
compassivos os grandes rochedos de granito
oferecem-nos o ventre

pintaremos nesta gruta mãos de ocre amarelo,
de cinza, de sangue.
o azul é mais difícil: será preciso
esmagar o céu, esboroá-lo com raiva

mas isso, isso não nos compete

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Meditação sobre o fim de agosto

Like He
Fotografia de Like He

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MEDITAÇÃO SOBRE O FIM DE AGOSTO

exaspera-me esta calma aparente. agosto quase no fim é um mês muito outro daquele que no começo me levava de azul em azul através do espaço. agora o céu é cinzento e a calma é superficial, como a véspera de alguma coisa que não se conhece bem. sei que os braços, e sobretudo a cabeça, me doem e pesam. é como se em vez de ar carregassem mágoas, ou pesadelos, ou a ameaça de uma morte. enerva-me a inexatidão dos sentidos. e por isso levanto-me e vou caminhar. também o coração se parece de chumbo. também ele me exaspera

30 de agosto de 2021

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Dentro de casa os olhos

Johannes Vermeer, Leitora à janela, ca. 1657
Johannes Vermeer, Leitora à janela, ca. 1657

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DENTRO DE CASA OS OLHOS

dentro de casa os olhos rodam,
linhas seguras, móveis lisos, corredores e livros,
artefactos,
uma lâmpada

os olhos desventram, procuram

andaimes de vazio, o envelope esgarçado,
a carta, a luz
– olhá-la, que desterro!

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