o cheiro das cinzas é quase
tão indecifrável quanto
a efusão da tinta.
com elas escrevemos
não palavras, mas o silêncio,
não a manhã, mas memórias,
não o fim, mas um rosto –
também ele impossível
de dizer,
seja de que forma for
nenhum de nós habita ao certo
o tempo que o calendário e os relógios calculam.
a outra era pertencemos por vezes,
como se, clandestinos, corrêssemos a noite
em busca de um aroma, de uma voz,
de um nome
como de novo se vivessem aqueles que um dia,
na sua descarnada natureza, deixaram
de poder abraçar-nos,
como se por milagre tivéssemos reencontrado
o rosto inexplicável, o rosto imenso
da nossa própria solidão
cotos de sabão secando nas margens do tanque,
frascos vazios e teias de aranha no parapeito das janelas,
algum fruto esquecido,
triste até à exaustão
dentro das gavetas naftalina,
peças brancas de linho, cambraias, lenços, os coturnos de lã
a esmo, no remanso de uma caixa de sapatos, os óculos,
os teus alfinetes, retratos ovais cor de sépia,
suponho que duas ou três algumas cartas,
não de amor mas dos filhos, do ultramar,
o bilhete de identidade com o dizer “vitalício”
alguém juntou tudo à pressa
fecharam os portões com arame e um cadeado grosso,
puseram à mostra, em letras gordas, a vermelho,
as palavras “vende-se”
depois veio da imobiliária uma moça loira, de minissaia
percebia bastante destas coisas,
torceu o nariz mais do que uma vez,
disse que da casa não era de esperar grande coisa
depois é um eco de velhas sucatas
adormecidas, cablagens e
candeeiros a petróleo, caixas de
sapatos e bonecos de caco,
coisas dispersas, despejadas pelo
tempo ao acaso através da pele
sem rasto é o cheiro do silêncio,
o rosto que nos pertencia
e hoje não passa de gelo talhado
a esmo, por entre as frestas
da memória