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AGASALHO
onde havia o nada, as mães tricotaram
a memória
uma cicatriz de fogo agasalha-nos
de toda a desolação
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UM GRANDE BEM EM NÓS ACORDOU.
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a manhã é limpa, silenciosa, veemente.
do fundo da terra ergue-se um nome
que agora é sol,
que agora é um sussurro de erva,
que agora é uma saudade em nós imersa
a manhã é paz, blandícia, ternura.
quem respira respira fundo,
ainda que doendo por dentro os olhos,
ainda que ardendo o lugar escuso
onde o vazio se confunde com o amor
a manhã é limpa, silenciosa, veemente.
somos leves e castos
como o verde depois da tempestade.
nalgum canto do universo, em nós,
um grande bem acordou
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OUTUBRO
no ponto exato do caderno onde deixaste o verão,
o sol é já um deus diminuído e só
outubro é a carne verde dos primeiros dióspiros
se dormes até mais tarde, ao abrires as janelas
vês a coluna de fumo ao longe
erguendo as fogueiras
até ao lugar onde os pássaros fogem
embriagas-te no odor da madeira incinerada,
no cheiro que a terra torna inconfundível
ao vibrar com os pingos
da chuva
no caderno ficou-te o traço firme das certezas
mas na boca agora só a amargura eclode,
só ela como a última cinza arde no corpo de uma vestal
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PELAS FRINCHAS DA GARAGEM
pelas frinchas da garagem
entram os dedos da lua
depois é um eco de velhas sucatas
adormecidas, cablagens e
candeeiros a petróleo, caixas de
sapatos e bonecos de caco,
coisas dispersas, despejadas pelo
tempo ao acaso através da pele
sem rasto é o cheiro do silêncio,
o rosto que nos pertencia
e hoje não passa de gelo talhado
a esmo, por entre as frestas
da memória
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CHUVA
em certos lugares encontra-nos a noite
caindo nas mãos um do outro
como duros pedaços de antracite
que o lume seca e lava
e fragmenta
a desolação produz poças negras e viscosas,
em cujo silêncio mergulha às vezes
um corpo exangue
dói quase tudo,
uma frase presa na traqueia,
a chuva desamparada no varandim,
o inseto afogado na água,
o tempo que devagar nos morre
no ódio comum
nada nos salva,
nem a poesia,
nem a invisível chama dos olhos marejados,
nada
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CASA DE PRAIA
manhã de agosto.
agora já só restam alguns dias
a cabeça, ao contrário do começo deste mês,
pesa e cai desgraçadamente.
como as luminosas pétalas do limónio
desagrega-se
e há espinhos à volta dela que a defendem e sitiam
e estrangulam
sobre a mesa não se conjuntam já
os copos, os sumos, o ardor da geleia,
a fruta
cada um tomará o pequeno-almoço na sua hora
e muitos de nós já partiram.
as noites de calor intenso intervalam agora
com serões de nevoeiro
e a cama na solidão ouve o ranger da insónia
e da lua
– a lua cheia de agosto –
quem me dirá porque, sobreposto à neblina, o seu halo
me parece um enfermo saltando no sargaço,
ferindo-se nas conchas partidas,
doendo entre as mãos?
se mergulho no seu aroma húmido, verei
o paulatino desfilar das minhas mulheres,
da mais nova, daquela cujos seios há muito beijei
não sabendo o que fazia,
da outra, da que me rasgou o orgulho como se rasga
um corpo com punhal,
daquela a quem confiei segredos inexistentes
e de que fujo ainda em duas décadas de vergonha
agosto é um precipício,
uma sedição,
este cheiro que nos afunda,
nos aconchega,
nos estrangula
agora já só restam alguns dias.
cabe-me recolher as espreguiçadeiras,
dobrar os panos de cozinha, fechar as portas
o último dia deste mês será como ter atingido
a outra parte do mesmo continente longínquo
aí também eu serei estrangeiro.
aí também eu serei um apátrida
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A BARBA POR FAZER, O CASACO AO VENTO
a barba por fazer, o casaco ao vento,
silêncio no lugar das respostas,
olhos brilhantes e ardilosos,
espiguetas e cizânia,
cardos do mar
no areal há caminhos semelhantes
ao que desenham os meus pés
uma ou outra vez na minha vida
transformo-me em mineral para que as marés
me lapidem
sou de vidro, sim.
calem-se todos! vós também,
vozes na minha cabeça!
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